12 de novembro de 2014

"Gerais" um disco histórico e meu sangue pisado.





O Novo disco de Renato Martins e Roberto Didio será referência pétrea para quem quiser entender o futebol no universo da cultura brasileira daqui pra diante.



É Corinthians. Já não é pouco, mas não é só isso. É futebol, mas também não é só isso. É a cabeça brasileira do torcedor de futebol de gerações passadas até a mais recente.

Sim, e isso é muito.  É em primeira pessoa, não no tempo, mas na confissão, pois estes dois autores demonstram, com a displicência dos que sabem muito, que têm propriedade,  por experiência vivida para tratar da coisa.

É cinema. É cinema requintado pois permite a você montar tua cena com seus próprios retalhos de memória, posto que não direciona, mas dá pistas insinuantes, sensíveis e precisas.

O verso “João subindo a rampa devagar”, por exemplo,  no samba Noite de 77, pode não significar nada para muitos, mas para muitos outros, indicará cinematograficamente, num corte ligeiro e mágico, um dilúvio de informações identificáveis ao torcedor de futebol que já pisou no Morumbi algum dia e, desta maneira, já te desmonta emocionalmente no primeiro verso que aliás, é concluído com “terço e radinho de pilha na mão”.
Vocês conseguem entender melhor agora? Isso não é só futebol, certo? Isso não é só Corinthians, certo? Mas todos sabemos ou a maioria sabe do que se trata.

O disco inteiro é assim. Você terá suas emoções remexidas. Você terá um reencontro emocional arrasador.

Fiquei sem apoio. A gente procura se apoiar quando toma essas pancadas e, nesse esforço, me lembrei do filme “O Fabuloso destino de Amélie Poulain. A personagem encontra, acidentalmente, em um vão de uma das paredes de sua casa, uma caixa de metal envelhecida pelo tempo. Abre a caixa e encontra figurinhas, soldadinhos de chumbo, carrinhos. Entre as delicadezas todas que a personagem comete no filme, ela se esforça para encontrar o dono da caixa e devolvê-la. O dono agora é homem feito nos 50 anos, aparenta certa sisudez, certa amargura. Ela consegue fazer a caixa chegar ao dono. A reação do homem reencontrando sua caixa de brinquedos foi a minha na primeira audição de Gerais.

O Disco contém caminhos melódicos e harmônicos poderosos traçados por Renato Martins. São inflexões soberbas para o discurso. Não sei quem fez primeiro o quê, falo sobre letra/melodia, mas para mim, fica claro que ambos falavam da mesma coisa. Observe os momentos de plenitude deste encontro em trechos como “O Maracanã morreu por dentro, meu senhor” em Gerais, em “uma rosa preta e branca a poesia trouxe aqui pra você,  Tia Rainha Geni...” em Rosa preta e branca, em “...eu era rei nos ombros seus pensando que podia até tocar o sol...” de Saudade do meu Avô, um primor. Ou nos saborosos “...amendoim, pernil...” e “...lateral subindo mais que a Brahma...” de Hino do Futebol moderno. Sem falar da linda marcha Mar Negro. Tudo sem salto, sem susto, orgânico, intrínseca. Você é levado pela música sem se dar conta graças a ela mesma. Uma generosidade.

As letras contêm pérolas aos montes. Tanto tempo é necessário para surgirem as pérolas. Roberto Didio é um craque em não dizer o que ele quer que você entenda. E você entende. Repare, aqui há um mundo de coisas que não está escrito: “Tua fotografia o tempo pintou de amarelo”, “... teu hino é muito maior (...) faz a favela rasgar o pano da humilhação, Marighella também foi coringão...”, “Corisco vendeu mel engarrafado, balançou em trem lotado (...) não deu campo nem salão...”, "...eu sei porque sofri, tem mais raça o sofredor...". São muitas. Domina o tempo ou sabe congelá-lo para que o ouvinte o veja. Faz uma tarde cair só olhando pro céu, uma capacidade de síntese assustadora e muita generosidade pois dá tempo ao ouvinte, dá respiro, sugere, insinua construtivista.

A direção musical é assinada por Glauber Seixas, Marcus Thadeu e Magno Júlio. Tudo bem tocado, bem cantado e os arranjos só contribuem à narrativa. Batucada nas mãos de Marcus Thadeu e Magno Júlio. Fácil, redondo. Meio campo com Zenon. Tamborins dobrados, um copo, um pandeiro nada ortodoxo (graças a Deus!), um surdo senhor de si e que se vire a turma dos arames. E se viram bem. Há contribuições de peso nessa arquibancada. Cristovão Bastos, Luciana Rabello, Ana Rabello, Lelo, Renato Braz, Gabriel Cavalcante, Júlio Pinheiro no 7, o botonista Maurício Carrilho, Anabela e, uma cantora que adoro, Amélia Rabello. Gente que só fica maior dando voz aos que têm o que dizer. E há as interpretações do próprio Renato Martins que são excelentes.

Gabriel Cavalcante é um acontecimento! E ele é quem canta o "Samba pro Magro". Outro acontecimento!

Desenho gráfico de Sergio Rossi. Preto e branco recuperando a fonte do número da camisa da democracia corinthiana. Certeiro, enxuto, preciso.

Para mim transpareceu o prazer que os envolvidos tiveram nessa produção. Tudo amarrado. “É olhar escolher e marcar”.

Eu tenho um orgulho danado de presenciar isto e sei, muito mais tranquilo, que se a corda arrebentar de repente esses dois estarão na frente. Estarão na frente.

Há algumas faixas disponíveis aqui. Ouça e confira.

Você encontra o cd nestes lugares. E se quiser escreva para eles: geraisgeraisgerais@gmail.com


Rio
Arlequim
Praça XV, 48 - Loja 1
21 2220-8471
www.arlequim.com.br

São Paulo
POP's Discos
Rua Teodoro Sampaio, 763 - Loja 4
11 3083-2564
www.popsdiscos.com.br

O Patriota (Bar do Alemão)
Rua Jarinu, 591 (somente horário de almoço)

11 2098-0961



Sobre o sangue pisado é o seguinte:
O futebol, o carnaval, especialmente os vividos dentro da Nenê, formaram quem sou.
E formaram graças a este universo tão bem pintado por Martins e Didio. Hoje eu preciso fazer um esforço danado para enxergar o que me foi ensinado. Seu Nenê partiu, meu craque Zé Sergio, foi quebrado, enredo é vendido pra quem der mais, futebol de resultado instituindo-se como única forma. São pancadas e mais pancadas que não me quebram nem me cortam, mas me deixam bolhas de sangue pisado porque me machucaram nas paixões. Pra dar a volta, pois não vergo, não, fiz desse sangue pisado a cor da minha camisa: Grená. Lá na Javari toco repinique na arquibancada, encontro Didios, Renatos, fiéis, palestrinos, peixeiros, o Seu Coutinho e meu filhote se agarra no alambrado pra xingar o bandeira.

9 comentários:

Everaldo F. Silva disse...

Análise impecável do primoroso GERAIS. De emocionar, Doglão. Abraço.

Anônimo disse...

Ótimo texto. E tão bem escrito para um ótimo trabalho realizado para esses dois compositores de mãos cheias. Brindemos à música, à naturalidade, à arte não material, que se desprende da padronização momentânea, tão regrista, que se quer sobrevive ao tempo.

Renato Martins disse...

Grande Douglas, meu irmão, me emocionei demais com o texto sobre o nosso Gerais. É fato que percebeu tudo que está pouco evidente, todas as minúcias poéticas de meu parceiro, além, é claro, de meus caminhos melódicos perseguindo a história ou vice-versa. Aí são causos para um balcão, algumas horas num botequim quem sabe num carnaval ou numa final de campeonato, quem sabe...

Obrigado!
Renato Martins

Douglas Germano disse...

Certamente, Renato!

Roberto Daga disse...

Eu que já tinha me EMOCIONADO,qdo escutei a OBRA PRIMA de ROBERTO DIDIO e RENATO MARTINS,pois vive e em carne e osso o que nos foi colocado Inteligentemente em POEMA ,agora de novo me EMOCIONEI com a forma que você DOUGLAS redigiu o texto sobre isto que é a história de uma vida numa arquibancada e fora dela e também em uma torcida ORGANIZADA que existe em pro do GRANDE {S.C.CORINTHIANS PAULISTA}...

MUITO OBRIGADO

ROBERTO DAGA.

Anônimo disse...

Douglas e Renato (citados na mensagem acima),

Mestre Roberto Daga é fundador dos Gaviões da Fiel - sócio número 3 -, que nasceu em 01/07/1969.
Muito aprendemos com ele.

Abraços,

Didio

Douglas Germano disse...

Mestre Daga é uma prova. É um álibi. É personificação de tudo que Renato e Didio registram em Gerais. Obrigado pela mensagem! Grande abraço!

T disse...

Obrigado Roberto.
Para mim é um orgulho muito grande ter ajudado meu irmão, teu xará a contar essas histórias, que são dele, tuas e de tanto braço forte desse tempo especial.
Eu é que só tenho a agradecer.
Um abraço forte!

Renato

Eduardo Lamas Neiva disse...

Douglas, a admiração que tenho pelo seu trabalho se expande agora após ler este belo texto. Ainda mais que me procurou para apresentar a este "Gerais", que ainda nem ouvi inteiro e já gostei demais (pra rimar mesmo!). Muito obrigado mais uma vez. "O Maracanã morreu por dentro..." e muito de mim, da minha história, e de muitos, muitos outros desmoronou desde que o crime foi anunciado. Ficou só a memória e obras-primas como estas e as que você também compõe e compôs para nos mostrar que ainda há (muita) esperança. O juiz ainda não apitou e apontou pro meio do campo, então, como diria Saldanha: vida que segue. Com a Arte, segue mais bela. Parodiando o poeta Gullar: "O futebol-arte existe, porque a vitória não basta". E nenhuma derrota nesta vida é definitiva, é só força maior para nos levantar. Forte abraço.

Na Ronda

Douglas Germano – 17.02.2024 Na ronda assopro na brasa, marreta no berro, a faca no cio Na ronda estalo no mato, pancada na terra...