20 de abril de 2012

Eu, Dinho e as Capuchetas



Atrás de minha casa havia um terreno baldio. Imenso. Chamávamos de “campinho”.
Lá aconteciam os rachas na base do pé descalço, ki chute e bola de capotão nº5.
O terreno era elevado. De lá, meus pés ficavam no nível do telhado de minha casa. Também dava para ouvir os gritos e chamados da mãe, ver o quintal, azucrinar o cachorro e era ótimo para empinar pipa. Rua Itatiaia, 133 em Poá, zona leste de São Paulo.


Eu não tinha nenhum apetrecho eletrônico para me divertir. Eles não faziam falta. A diversão sempre acontecia com os amigos da rua. Rampas para salto de bicicleta, pula-sela, casamento atrás da porta (onde foram experimentados os primeiros beijos da turma), mãe da rua, pega-pega e um esconde-esconde de dimensões “quarterônicas”.
Os Pais ganhavam o dinheiro do mercado, da feira, da luz, água, gás e quando sobrava algo, a mãe fazia um bolo e o pai um churrasco com bifes e umas linguiças.


Fazíamos as pipas, mas às vezes não havia papel. Era a hora da capucheta. Você já empinou capucheta? Só vai folha de jornal e linha.
Fizemos duas eu e Dinho. Dinho era a diminuição da diminuição Raimundinho. Jogava muita bola. Canhoto. Meu vizinho de frente. Filho de Dona Maria e Seu Raimundo. Irmão de Adhemar, Walter, Auristélia e Olga. Tínhamos a mesma idade.
Fomos para o Campinho.
Colocamos nossas capuchetas no ar. Tinha vento. Quem já empinou capucheta sabe que  não dibíca com muito vento. Subiram direto.
Nós, do campinho, víamos as capuchetas cruzarem a extensão da minha casa e chegar à casa do Dinho. Tinha vento.
Aconteceu que meu estirante quebrou e minha capucheta enroscou na linha do Dinho. Empinador de pipa detesta perder linha. Ficamos ali tentando manobrar (mais o Dinho que eu, verdade) a capucheta que sobrou para trazê-la de volta e não perder linha, pois seriam uns 120 metros de linha juntando as nossas duas.
Tinha vento e começou a rodar. Tentamos superar os fios da rua na puxada. Não fomos rápidos o suficiente e embolou no fio.
 

— Carai, Dinho...
— Mas cê também num amarra estirante direito. Sabe amarrá estirante não, carai?
 

Ficamos ali olhando. Imaginamos que o vento forte soltaria as capuchetas. Soltou nada. Depois de meia hora desistimos e resolvemos dar o “puxão” pra quebrar a linha, juntos.
Contamos. Puxamos.
A capucheta não rasgou e com a força de duas linhas, um fio encostou-se ao outro.
Houve um clarão daqueles que ficam na retina e você revê quando fecha o olho e um estouro enorme.
 

— Carai!! Dissemos juntos.
 

Largamos lata de linha, pé de chinelo e tudo e corremos feito doidos, cada um pra sua casa.
Não vi mais o Dinho e nem ele me viu.
 

Chegando em casa a mãe na mesa da cozinha passando uma pilha de roupa xingava a light, na época.
Fui para o meu quarto achando que a qualquer momento viria a baratinha para me pegar. Eu e o Dinho. Pensei em Dona Maria, mãe do Dinho. Era cardíaca. Fiquei apavorado.

Resultado: 6 horas sem luz. 3 televisores e duas geladeiras, dos vizinhos, pifadas.
A mãe que me contou acrescentando que iam ligar pra light para reclamar.

Em casa não queimou nada. Na do Dinho também não.
Eu não falei nada das capuchetas. Dinho também não.


No dia seguinte veio a ameaça:
Tá me devendo um carretel de 100 jardas, quero nem saber...

Na Ronda

Douglas Germano – 17.02.2024 Na ronda assopro na brasa, marreta no berro, a faca no cio Na ronda estalo no mato, pancada na terra...